Temos acompanhado nos últimos dias reações as mais diversas acerca do pronunciamento do Papa Francisco sobre certa postura cristã em relação aos direitos civis das pessoas homossexuais e homoafetivas. Reações de julgamentos apressados e distorcidos dentro e fora da Igreja. Desde uma mídia viciada e mal-intencionada (à serviço de uma visão reducionista como geralmente é a própria visão de boa parte das pessoas que fazem parte desse grupo e levantam essa bandeira), passando por leigos e leigas confusos que juraram afastar-se da Igreja por não se verem representados por um Papa assim ou até mesmo padres que, em homilias, vaticinaram a alto e bom tom ser o Papa um herege necessitado de conversão, causando revolta no fiéis presentes que, em parte, abandonaram a celebração revoltados com seus párocos.
Um Papa que, convidando à acolhida e à misericórdia antes que ao julgamento (como fez o próprio Jesus no caso da samaritana ou da adúltera prestes a ser apedrejada), é contestado quase que odiosamente e tratado com inclemência e intolerância, até mesmo entre aqueles e aquelas a quem ele pediu a bênção, antes mesmo de abençoar, no dia em que foi apresentado ao mundo como Papa Francisco. A palavra de Jesus de que no mundo haverei de encontrar aflições (João 16, 33) torna-se real e intensa para o para o Papa do fim do mundo que descobre com sofrimento que o mundo pode ser a sua própria casa, as ovelhas de seu próprio rebanho.
Mas creio que o Papa Francisco não se admira de tais reações, não se intimida ou fraqueja, pois tem sempre diante de si o fracasso e a loucura da cruz e a fidelidade de quem ele nos pediu que olhássemos mais em seu pontificado: nosso Senhor Jesus Cristo. Sabe que com o Mestre foi mesmo bem assim: “este homem acolhe os pecadores e come com eles”! (Lc 15, 2); ou, “se esse homem fosse profeta saberia que a mulher que está tocando nele é uma pecadora” (Lc 7, 39b), enquanto a pecadora lavava os pés de Jesus com as lágrimas, enxugando com o cabelo, beijando-os e lançando neles perfume. Ou ainda: “pode, por ventura, vir alguma coisa boa de Nazaré”?, perguntava-se Filipe, um dos escolhidos, questionando a identidade de Jesus. Não é o que ouvimos hoje: pode, por ventura, vir alguma coisa boa do “fim do mundo?” Nada fácil é compreender que desde a Antiga Aliança, firmada pela Lei, até a Nova Aliança, firmada pelo sangue de Cristo, tudo o que Deus quer é a misericórdia, em primeiro lugar, pois sem ela o sacrifício torna-se uma prática da boca para fora, não envolvendo o coração e, portanto, uma prática não compassiva. Por isso mesmo Jesus, retomando os preceitos da Antiga Lei (Oséias 6,6) nos incita: “ide e aprendei o que significam estas palavras: Eu quero a misericórdia e não o sacrifício. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores!” (Mateus 9, 13). Mas pecadores somos todos, nos confirma a Palavra (!João 1, 8). Mas nosso pecado pode ser ainda maior e à ele somarmos o sermos injustos… inclementes…impiedosos!
Vivemos tempos difíceis! Conciliar uma experiência religiosa cristã autêntica com a expressão contemporânea de uma autonomia baseada unicamente na referência a si mesmo como valor absoluto é uma tarefa complexa, exigente. Tudo e todos parecem operar na única ótica do EU: faço, quero, posso, vou… meu, para mim, comigo e por mim. A vida é minha, o corpo é meu, tenho o direito de ser eu!! Ouvir a voz de Deus mais que a própria voz, assumir o projeto de Deus mais que o próprio projeto, reconhecer-se pecador mais do que auto-justifcar-se torna-se cada vez mais sinônimo de perder a própria autonomia e abandonar as rédeas da própria vida. Ainda assim, é preciso fazer ressoar no fundo da própria convicção a confrontação necessária com a constatação evangélica da experiência do próprio Jesus: “Não se faça, todavia, a minha vontade, mas sim a tua” (Lc 22, 42b). Depois verteu sangue em poros, tamanha era sua agonia, sua angústia por ter compreendido que crer e dar a vida pelos de Deus, sendo-lhe fiel até o último instante, era renunciar a si mesmo por um amor maior! Haverá ainda em nosso tempo amor maior que o EU? Teremos coragem de assumir nossas próprias limitações do que justificar nossas vontades? Lançaremos ao chão as pedras que carregamos nas mãos ou ousaremos insensatamente lança-la na direção da pecadora?
Uma situação real, no que tem de intenção, me fez pensar e acolher a mensagem do Papa Francisco que reflete, na verdade, as intenções do próprio Cristo em termos de uma acolhida misericordiosa: depois de viver quinze anos com uma companheira, num relacionamento estável, M.L perdeu a companheira num acidente automobilístico ficando ela mesma lesionada em uma de suas vértebras, impedida de movimentar-se em seus membros inferiores. A três anos as duas cuidavam de uma criança em processo de adoção. Ao tentar fazer uso dos bens que a companheira havia herdado de sua família e agora deixava, bens que ela mesa também ajudou a expandir, foi-lhe negado com a justificativa que não teria direito algum nos bens. Os familiares da companheira reivindicaram o direito aos bens sem levar em conta a situação atual de M. L. ou a intenção da que havia falecido. Pergunto: exigir algum direito para M. L, na ordem do direito, ou seja, de nossa civilidade, seria trair o Evangelho? Tornar-nos-íamos hereges? Parece que é a essa possibilidade de garantia de direitos que o Papa se referiu quando propôs que a sociedade precisa resguardar tais pessoas a fim de não ficarem expostas a injustiças e preconceitos descabidos. Não estaria aqui a possibilidade de expressarmos o quanto, na prática da civilidade, amar ao pecador, não obstante repudiando o seu pecado, é expressão de misericórdia? Estaríamos dispostos, ao menos a dialogar, ou estaremos obrigados em sã consciência a concluir com o Apóstolo: Para onde iremos, Senhor? Só tu tens palavras de vida eterna”! (João 6, 68).
Diácono Robson Adriano