Do virtual ao real, Deus nos ampara em seu amor!

A noite já ia adiantada, engolindo o dia e trazendo consigo o cansaço de mais um dia e a necessidade do merecido descanso. Já ensaiava a oração das completas, convocado pelo hino – “Agora que o clarão da luz se apaga, a vós nós imploramos, Criador: com vossa paternal misericórdia, guardai-nos sob a luz do vosso amor!” – quando fui interrompido pelo telefone. Como o número não fora identificado, relutei em atender, mas decidi fazê-lo uma vez que só iniciava a oração da noite e poderia recomeça-la sem problemas posteriormente. Além do que, às vezes é preciso saber deixar Jesus (na oração) para encontrar Jesus (na vida). Identifiquei rapidamente a voz de uma amiga, assim que a ouvi me perguntando se eu estava bem! Antes mesmo de me deixar respondê-la, já foi logo chorando e desabafando: “não estou bem não, meu amigo! Acabei de perder meu companheiro para um câncer no pulmão! Como se não bastasse, também testei positivo para o COVID 19! Estou em outro estado, e não encontrei ninguém que pudesse sufragar por mim e comigo a alma dele. Pensei em você e se poderia valer-nos nesta hora, ainda que virtualmente. Isso não importa! Ele sempre teve muita fé, eu também tenho e para Deus não há distâncias ou isolamento. Posso contar contigo?”

Alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram, (cf. Rm12, 15) foi o que são Paulo nos ensinou, depois de ter aprendido com o próprio Jesus. Marcamos, então, as exéquias para um pouco mais tarde. Era a primeira vez que me vi sendo solicitado para o cortejo fúnebre de um falecido de forma VIRTUAL!! O falecido era real, a circunstância real, o sofrimento da amiga real e mais real ainda a sensação de abatimento devido a tanta tribulação; a tristeza era real; o vírus da morte era real, mas também real a fé e a certeza de que, não obstante a virtualidade da forma da celebração, a REALIDADE do amor de Deus fecunda toda dor e toda tristeza, nos amparando sempre.

Carregamos nosso tesouro em vasos de argila, tamanha é a fragilidade de nossa humana condição. (cf. 2 Cor 4, 7). E se não permitirmos que nossa fé fecunde o chão batido de nossos sofrimentos e dores, atolaremos na angústia, no desânimo e destruiremos o sentido de viver!! Pois a angústia sufocará a esperança, o desânimo nos deprimirá e chegaremos à conclusão que não valerá mais a pena viver!!! Mas CREMOS e ousamos professar nossa fé contra toda desesperança. Embora em tudo sejamos atribulados, não somos, esmagados; embora perseguidos, não somos desamparados; embora abatidos, não somos destruídos. Compreendemos que “sem cessar trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus a fim de que a sua vida também seja manifestada” em nós. Por isso mesmo não perdemos a coragem e estamos sempre cheios de confiança. (2 Cor 4, 8-10;16. 5, 6)

Por isso mesmo, cada instante e circunstância deve ser aproveitado como se fosse o primeiro, o único e o último! É como nos diz a canção, Verdades do Tempo, É preciso ofertar o amor mais sincero, o sorriso mais puro e o olhar mais fraterno. O mundo precisa saber a verdade: passado não volta, futuro não temos e o hoje não acabou. Por isso ame mais, abrace mais, pois não sabemos quanto tempo temos pra respirar. Fale mais, ouça mais. Vale a pena lembrar que a vida é curta demais!” Devemos degustar a vida, em seu dulçor e sabor, com todo afeto e ternura. Esta intensidade de afeto é a única coisa que, como o amor, jamais passará e nos permitirá, aqui nesta terra, nesta vida, não sucumbirmos aos desamores e desesperanças, bem como na outra vida nos abrirá o coração de Deus em eternidade. Essa é a sabedoria do tempo presente vivido como dádiva em todas as decisões, todos os projetos e considerações! E essa sabedoria nos faz compreender que, embora seja legítimo lágrimas e choro em toda morte, elas brotam do afeto que nos une uns aos outros e estão carregadas de amor. Bem assim mesmo fez Jesus quando chorou a morte de seu amigo Lázaro!

Enquanto escrevia este artigo fui solicitado ainda duas outras vezes para responder à mesma realidade do companheiro de minha amiga, embora não virtualmente. Se juntam às mais de cento e quarenta mil pessoas acometidas pelo vírus nesta pandemia! Não podemos permitir que tais números só nos remetam a uma triste estatística, que de tantos, nos acostumamos com a notícia que nem mais tristemente a recebemos. Por trás de todas elas há histórias sem fim que nos remetem à nossa condição. Por essas pessoas que ficam na companhia da ausência e da saudade, rezamos: “Deus do afeto e do afago; companheiro na vida e na morte. Teu amor fiel por nós não termina nunca. Nosso choro pode até se prolongar por toda a noite, mas tu nos restituis a alegria assim que o dia amanhece. Toca-nos com a tua graça sanadora para que nossa vida seja restaurada e possamos assim viver nossa vocação como um povo ressurreto! Amém!”(CEBI)

Diác. Robson Adriano

Espiritualidade do Avental

Certa vez aproximou-se do Senhor um escriba, talvez motivado pela multidão que circundava o Senhor e pelos relatos dos muitos feitos que eram atribuídos a Jesus, e declarou com toda empolgação: Mestre, eu te seguirei para onde fores!! (Mateus 8, 19). Ao olhar aquele homem e ouvi-lo em seu posicionamento, o Senhor, sempre com muita acuidade espiritual, e amando-o em verdade como sempre fazia, percebeu que aquela motivação inicial pudesse fazer o escriba ter uma visão deturpada do discipulado, do seguimento, uma visão mais romântica do que a realidade na verdade o apresentaria. Lembremos que os escribas eram homens letrados, versados nas Leis e intérpretes da Palavra; conhecedores das escrituras e autoridade na arte da hermenêutica bíblica. Portanto, eram certa referência importante nas comunidades israelitas. Como diríamos nós, talvez ele pensasse estar trocando seis por meia dúzia; trocando uma posição de destaque por outra ao lado daquele homem que curava, reunia multidões, multiplicava pães e peixes, expulsava demônios, dominava ventos e tempestades, congregava discípulos, pregava com autoridade para milhares, enfim, tornava-se um “mito”! Quem estivesse com ele (talvez pensasse o escriba) certamente faria parte da porção dos privilegiados!!!

Pois bem, olhando para o escriba respondeu Jesus: “As raposas têm tocas, e as aves dos céus seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça”! (Mateus 8, 20). Uma resposta que, de certa forma, propunha um choque de realidade àquele que empolgadamente se dispunha a seguir o Mestre, independentemente para onde fosse. Penso que toca e ninho, nestes termos, podem sugerir aconchego e proteção. Metáforas de um lugar que é referência de identidade e segurança. Transpostas para a realidade humana, convertem-se em casa, lar, família etc. Parece que com o choque de realidade, Jesus queria provocar naquele escriba, acostumado a escrever, transcrever as Leis e a interpretá-las, a partir da referência segura de uma tradição, a real situação dos que se põem a caminho, em seu seguimento. Mostrava ao escriba que segui-lo significava abrir mão das seguranças pessoais (quer de bens materiais ou privilégios tantos) e viver a mística do serviço: “Eu vim para servir, não para ser servido!!” E um tipo de serviço que, expressando-se como dom-de-si ao cuidado e socorro das necessidades do outro (necessidades espirituais e/ou materiais), implica também, e quase sempre, senão sempre, o sofrimento, a perseguição, incompreensões e riscos, pois o próprio Mestre nos ensinou não haver ressurreição sem cruz! Os que tentam, perdem-se em atalhos que não permitem chegar ao destino: a edificação do Reino do Amor, também chamado Reino de Deus.

Não sem razão, chamaram também a mística do serviço de “Espiritualidade do Avental” (Frei Patrício Sciadini). No relato bíblico da cena do lava pés (João 13, 1-17), fica claro que Jesus, depois de tirar o manto, atou uma toalha à cintura (ao modo de um avental, pois depois deu-se a si mesmo de comer a nós) lavou os pés de seus discípulos, depois colocou novamente o manto e, seguindo para o lugar onde estava, proclamou: Vocês me chamam de Mestre e Senhor, e dizem bem, pois EU SOU! Portanto, se eu assim o fiz, façam vocês também o mesmo. Dei-vos um exemplo a fim de que, assim como eu faço, vocês também o façam”!  Detalhe: o relato do Evangelho não diz que o Senhor retirou da cintura sua toalha, seu avental. Neste instante, em nome do EU SOU, Deus conosco, Jesus “sacramentalizou” o serviço como o sinal permanente da doação de si à edificação do seu Reino de justiça, paz e amor. E assina posteriormente este testamento, não com as letras da Lei, que o escriba tanto entendia, mas com seu sangue na cruz, na entrega da própria vida doada como máxima expressão de quem ama e é fiel ao Pai. Dessa forma, todo cristão, seguidor do caminho do Cristo, que, não renunciando a cruz, perfaz o caminho do discipulado pelo serviço, é sinal visível da promessa feita por Cristo de estar conosco todos os dias até o final dos tempos. Pelo serviço, tornamo-nos alimento de esperança a quem tem fome do Reino de Deus.

Mas esta lição nunca foi de fácil assimilação para os Apóstolos e discípulos da primeira hora, nem para nós que ocupamos o lado de cá destes tempos que são os últimos. Não raras vezes o Mestre insistia que entre os seus discípulos, e insiste que entre nós cristãos, não devia sobressair a lógica do privilégio, do quem é melhor, das comodidades e regalias da vida, mas pela lógica da Espiritualidade do Avental; de uma vida sacramentada pelo serviço e pela doação.  

Assim, parece-me que Jesus quer nos educar na fé: não há maior prova de amor do que dar a vida por quem a gente ama. E se amamos a Deus, dar nossa vida a Ele significa, como o Filho nos ensinou, servir sempre e morrer em nome do amor e por amor se preciso for. Somente assim, o Espírito Santo encontrará em nós um coração manso e humilde no qual Deus possa entrar, fazer sua morada, e amar-nos como filhos no Filho!

Diácono Robson Adriano