JMJ e Encontro Mundial das Famílias adiados por um ano

Foi tomada a decisão de transferir o encontro das famílias em Roma para 2022 e o encontro mundial dos jovens em Lisboa para 2023.

Vatican News

A pandemia do coronavírus fez com que os organizadores de dois dos próximos grandes eventos da igreja reformulassem os seus planos. Em comunicado, a Sala de Imprensa da Santa Sé explica que “devido à atual situação sanitária e às suas consequências sobre a deslocação e agregação de jovens e famílias, o Santo Padre, junto com o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, decidiu adiar por um ano o próximo Encontro Mundial das Famílias, previsto para se realizar em Roma, em junho de 2021, e a próxima Jornada Mundial da Juventude, prevista para Lisboa, em agosto de 2022. Portanto, o Encontro Mundial das Famílias em Roma irá se realizar em junho de 2022, e a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, em agosto de 2023.

Presidência da CNBB publica a nota “Em defesa da vida: É tempo de cuidar” para pedir a todos empenho contra o aborto

A nota é uma resposta ao fato de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter agendado para o próximo dia 24 de abril o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5581 –, que versa sobre a liberação do aborto em caso de Zika vírus.

Brasília

A presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, porta-voz da Igreja Católica na sociedade brasileira, escreveu uma nota com o título “Em defesa da vida: É tempo de cuidar”. O documento, em sintonia com segmentos, instituições, homens e mulheres de boa vontade, convoca todos a defenderem a vida, contra o aborto, e se dirige publicamente, como o faz em carta pessoal, aos ministros do Supremo Tribunal Federal, para que eles defendam o dom inviolável da vida.

A nota é uma resposta ao fato de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter agendado para o próximo dia 24 de abril o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5581 –, que versa sobre a liberação do aborto em caso de Zika vírus. O julgamento tinha sido adiado em maio do ano passado após pressão de diversos movimentos pró-vida. A votação está prevista para acontecer de forma virtual.

EM DEFESA DA VIDA: É TEMPO DE CUIDAR

A Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, porta-voz da Igreja Católica na sociedade brasileira, em sintonia com segmentos, instituições, homens e mulheres de boa vontade, convoca a todos pelo empenho em defesa da vida, contra o aborto, e se dirige, publicamente, como o faz em carta pessoal, aos Senhores e Senhoras Ministros do Supremo Tribunal Federal para dizer, compartilhar e ponderar argumentações, e considerar, seriamente, pelo dom inviolável da vida, o quanto segue:

1.      “É tempo de cuidar”, a vida é dom e compromisso! A fé cristã nos compromete, de modo inarredável, na defesa da vida, em todas as suas etapas, desde a fecundação até seu fim natural. Este compromisso de fé é também um compromisso cidadão, em respeito à Carta Magna que rege o Estado e a Sociedade Brasileira, como no seu Art 5º, quando reza sobre a inviolabilidade do direito à vida.

2.      Preocupa-nos e nos causa perplexidades, no grave momento de luta sanitária pela vida, neste tempo de pandemia do COVID-19, desafiados a cuidar e amparar muitos pobres e empobrecidos pelo agravamento da crise econômico-financeira, saber que o Supremo Tribunal Federal pauta para este dia 24 de abril 2020, em sessão virtual, o tratamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5581, ajuizada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP, requerendo a declaração de inconstitucionalidade de alguns dispositivos da Lei 13.301/2016 e a interpretação conforme a Constituição de outros dispositivos do mesmo diploma legal.

3.      Há de se examinar juridicamente a legitimidade ativa desta Associação de Defensores Públicos, como bem destacado nas manifestações realizadas nos autos pela Presidência da República, Presidência do Congresso Nacional, Advocacia Geral da União e Procuradoria Geral da República, pois nos parece, também, que a referida Associação não é legitimada para propor a presente ADI, tendo bem presente que a Lei 13.985/2020 trouxe suporte e apoio para as famílias que foram afetadas pelo Zika vírus, instituindo uma pensão vitalícia às crianças com Síndrome Congênita como consequência.

4.      A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB, reitera sua imutável e comprometida posição em defesa da vida humana com toda a sua integralidade, inviolabilidade e dignidade, desde a sua fecundação até a morte natural comprometida com a verdade moral intocável de que o direito à vida é incondicional, deve ser respeitado e defendido, em qualquer etapa ou condição em que se encontre a pessoa humana. Não compete a nenhuma autoridade pública reconhecer seletivamente o direito à vida, assegurando-o a alguns e negando-o a outros. Essa discriminação é iníqua e excludente; “causa horror só o pensar que haja crianças que não poderão jamais ver a luz, vítimas do aborto”. São imorais leis que imponham aos profissionais da saúde a obrigação de agir contra a sua consciência, cooperando, direta ou indiretamente, na prática do aborto.

5.      A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil insta destacar que o combatido artigo 18 da referida Lei 13.301/2016, cuja ADI pretendia a declaração de inconstitucionalidade de alguns dispositivos, foi completamente revogado pela MP 894 de 2019, convertida em Lei em 2020 (L. 13.985/2020). Desta forma, parece-nos ainda que o objeto da ação foi superado, não servindo a ação para declarar a inconstitucionalidade de outra lei que não a inicialmente combatida.

6.      A CNBB requer, portanto, que, acaso seja superada a preliminar de ilegitimidade ativa suscitada por todas as autoridades públicas que se manifestaram, e não seja extinta a ADI pela perda do objeto, no mérito não sejam acolhidos quaisquer dos pedidos formulados para autorizar, de qualquer forma, o aborto de crianças cujas mães sejam diagnosticadas com o Zika vírus durante a gestação.

7.      Reafirmamos, fiéis ao Evangelho de Jesus Cristo, nosso repúdio ao aborto e quaisquer iniciativas que atentam contra a vida, particularmente, as que se aproveitam das situações de fragilidade que atingem as famílias. São atitudes que utilizam os mais vulneráveis para colocar em prática interesses de grupos que mostram desprezo pela integridade da vida humana. (S. João Paulo II, Carta Encíclica Evangelium Vitae, 58)

Esperamos e contamos que a Suprema Corte, pautada no respeito à inviolabilidade da vida, no horizonte da fidelidade moral e profissional jurídica, finalize esta inquietante pauta, fazendo valer a vida como dom e compromisso, na negação e criminalização do aborto, contribuindo ainda mais decisivamente nesta reconstrução da sociedade brasileira sobre os alicerces da justiça, do respeito incondicional à dignidade humana e na reorganização da vivência na Casa Comum, segundos os princípios e parâmetros da solidariedade.

Cordialmente,

Brasília, 19 de abril de 2020

Domingo da Misericórdia

Dom Walmor Oliveira de Azevedo

Presidente

Dom Jaime Spengler

1º Vice-presidente

Dom Mário Antônio da Silva

2º Vice-presidente

Dom Joel Portella Amado

Secretário-geral 

Fonte: CNBB

Reconstruir a esperança

17/04/2020

As feridas expostas da sociedade mundial, suas pandemias, sinalizam enorme desafio: reconstruir a esperança. Entre as chagas enfrentadas pela civilização contemporânea está um generalizado estado de desolação – falimento da esperança. Contundente é a interrogação que requer urgente resposta: o que se pode esperar? E no desafio inscrito nessa pergunta, outro questionamento é recorrente: em quem confiar? O desafio existencial de se encontrar sentido na vida soma-se ao grave problema de saúde da atualidade, a covid-19. A busca pelo sentido da vida – embora tratado na superficialidade do bem-estar e das futilidades alimentadas pela ganância do dinheiro, da busca mesquinha  por conforto – remete todos à questão central da própria existência. Lá, neste ponto de partida e de chegada, está o nascedouro da esperança, o lugar onde cada pessoa encontra os fundamentos para se reconstruir e, ao mesmo tempo, aproximar-se da plenitude.

A humanidade, ancorada em muitos avanços tecnológicos e científicos, admiráveis, mas alheia aos valores humanísticos, revela o seu despreparo para realizar, com a necessária eficiência, sua tarefa primordial – reconstruir a esperança.  E reverter esse déficit geral na qualificação humanística exige alcançar a indispensável dimensão da espiritualidade, ainda com tão pouco espaço no conjunto de reflexões e pensamentos sobre a condução do desenvolvimento da sociedade mundial. De modo pontual, aparecem grupos que se referem à espiritualidade e, sem proselitismos, com profundidade transformadora, apresentam práticas que ajudam a cultivar rica cosmovisão, contribuição significativa para construir um mundo melhor.

Mas a essencialidade da espiritualidade ainda não assomou ao seu adequado lugar, mesmo quando se requer a gênese de um novo tempo para a humanidade. E quando se diz que o mundo não poderá ser o mesmo depois da pandemia da convid-19, pensa-se pouco sobre o papel decisivo da espiritualidade. Corre-se o risco de acreditar que basta simplesmente descobrir nova lógica para a economia, sem considerar os equívocos atuais. Ora, essa nova lógica no contexto econômico, para superar o domínio perverso do lucro e da idolatria do dinheiro, que se desdobra em consumo ilimitado e nos hábitos egoístas, na desconsideração dos pobres, requer profunda espiritualidade, eivada de humanismo, mística e sentido de transcendência.

O distanciamento humano da espiritualidade resulta também em graves prejuízos para o meio ambiente. Os recursos naturais são usufruídos de maneira extrativista e depredadora, o que faz crescer a miséria e os desequilíbrios em todo o planeta. Com isso, a humanidade inteira sofre as consequências, a exemplo desta pandemia do coronavírus, que ameaça todos, sem distinção de status social ou nacionalidade. Não se passará a uma nova página da história sem que o mundo vivencie profunda espiritualidade, oportunidade para verdadeira transformação social. Isto exige que a humanidade valorize a experiência da contemplação e da mística, caminhos para a reconstrução da esperança, alicerce de um novo modo de viver.

Importante ressaltar: há um caminho que se camufla de autêntica espiritualidade, e ao invés disso centra-se na vaidade, objetiva exclusivamente a arrecadação e o acúmulo de poder. Manipula até mesmo a Palavra de Deus. A pandemia que a humanidade enfrenta desmascara esses religiosos que difundem conceito equivocado sobre a fé, oferecida por eles como solução mágica para problemas. Incapazes de solucionar uma ameaça real e complexa, se calam, comprovando que, diferentemente de suas promessas, não têm o poder de realizar milagres – Deus não se deixa manipular.  Há, ainda, os religiosos que promovem espetacularizações, teatralizações, evidenciando, também, despreparo espiritual e místico. A seu modo, também oferecem soluções mágicas para problemas complexos.

Percebe-se um despreparo geral, fruto da carência de uma espiritualidade profunda capaz de alimentar e reconstruir a verdadeira esperança. Consequentemente, proliferam os que promovem e os que buscam invencionices, bem distantes da riqueza do mistério da fé. Os que se apegam às invencionices ficam ao redor dele, o rodeiam, mas mesmo diante da fonte, acabam por morrer de sede e de fome.  Apegam-se à ilusória sensação de que a esperança se reconstrói e se fortalece com certos espetáculos e práticas inoportunas ou descontextualizadas. É preciso retomar a direção de uma qualificada espiritualidade. O primeiro passo é vivenciar a oração, que requer o silêncio, o salutar incômodo de se observar, contemplando a própria interioridade, única garantia para o autêntico encontro com Deus. Uma vivência da oração bem diferente de práticas devocionalistas, que produzem sensações efêmeras e momentaneamente geram certo conforto e bem-estar.

A construção da nova realidade que todos almejam exige longo caminho de aprendizagens, em que o essencial é reconstruir a esperança, alicerçada na espiritualidade daqueles que sabem orar, de verdade, para além de simples ritos ou de palavras. Contemplação e interioridade, pilares fundamentais da fé e da prática cristã autêntica, são imprescindíveis. Possibilitam alcançar nova sabedoria, enxergar os rumos novos exigidos pelos desafios atuais, a partir da vida interior. A verdadeira oração é essencial na reconstrução da esperança.

Todos reconheçam: mesmo que ninguém ouça, ou mesmo quando não se tem alguém com quem falar, Deus sempre está presente. Ele sempre ouve, com Ele pode-se sempre falar. Deus ajuda quando a capacidade humana está esgotada e sem condições para amparar. Mas poucos sabem escutá-Lo.  Esperar Nele para superar os desesperos e tornar-se fonte de sabedoria para ajudar a consertar o mundo. A reconstrução da esperança requer a escuta de Deus, como sustento, tocando a interioridade, para qualificá-la, fazendo, de cada pessoa, testemunha fidedigna da esperança, protagonista neste processo de renovação da humanidade.

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

Ilustração: Jornal Estado de Minas

Vivenciar silêncio profundo

10/04/2020

O mais profundo, misterioso e inquietante silêncio é o da morte. Amedronta e atormenta a existência humana, escancarando a sua finitude, experimentada também nos limites das enfermidades que batem, igualmente, à porta de ricos e pobres. A finitude remete à preciosidade da vida, que é dom. Ao mesmo tempo, ensina que a igualdade pela solidariedade é caminho único para a preservação e o desabrochar do dom da vida. Práticas distantes da solidariedade submetem a humanidade a pandemias muito ameaçadoras, escancarando aos olhos de todos que as riquezas, quando tratadas mesquinhamente, de nada valem, que o poder, se não for exercido como serviço, conduz ao autoextermínio.

O silêncio das ruas – embora ainda contracenando com a indisciplina, fruto de ignorantismos – o silêncio sacro das igrejas, transferido para a assembleia orante de cada lar, o silêncio na interioridade das pessoas, todos os silêncios, nesta Sexta-feira da Paixão, são tocados pelo silêncio profundo da morte de Jesus Cristo, Salvador do mundo, Mestre e Senhor. A oferta máxima de Jesus tem força para libertar o ser humano da escravidão, da dinâmica frenética de um dia a dia enlouquecido pelo ilimitado desejo de acumular dinheiro e posses a qualquer custo, passando por cima até do próprio bem.

O profundo silêncio da morte redentora de Cristo, em obediência amorosa ao desejo de Deus, Pai de Jesus e de cada pessoa – por isso todos são irmãos uns dos outros – tem propriedades únicas. Fecunda nova compreensão e permite à humanidade trilhar caminho diferente, em um tempo privilegiado pelas descobertas da razão, mas, também, repleto de incertezas e inseguranças – consequências da falta de espiritualidade. A dimensão espiritual é a fonte verdadeira de humanismo e do autêntico sentido de pertencimento a Deus, que salva e concebe a vida em plenitude, orientada por parâmetros capazes de fazê-la ressurgir no contexto de uma humanidade solidária. A vida torna-se sábia na relação com o meio ambiente, a Casa Comum, livrando-a de depredações criminosas e extrativismos inescrupulosos.

O silêncio profundo e ensurdecedor desta Sexta-feira da Paixão, ao mergulhar a humanidade no inexplicável e interpelante mistério da morte, revela a insignificância dos bens ante o valor maior da bondade. Apura o discernimento, permitindo se reconhecer dois preocupantes grupos no contexto da civilização contemporânea: no primeiro grupo, os indiferentes e perversos, que assim o são pelo desrespeito aos valores inegociáveis da solidariedade, por desconsiderar a dignidade humana. Apropriam-se do poder balizados pela mesquinhez, alimentando práticas e hábitos que provocam adoecimentos e esgotam a humanidade. São coniventes com a destruição do meio ambiente – argumentam que isso é “progresso” ou “desenvolvimento”. No outro grupo, estão os que tentam se aproximar da espiritualidade redentora nascida da Cruz de Cristo, mas encontram-se inabilitados pela ausência de valores e princípios. Consequentemente, alimentam compreensões estreitas, responsáveis por traduções inadequadas do mistério do amor de Deus. Apegam-se a práticas religiosas superficiais e contaminadas por invencionices. Pode-se dizer que são pessoas à beira do poço de água límpida, mas sem balde para retirá-la e matar a própria sede. Adotam práticas e escolhas, embora camufladas por uma “roupagem” cristã, desprovidas da força da fé e, consequentemente, incapazes de inspirar as mudanças necessárias a este tempo.

Esses dois grupos arrastam a humanidade para o fracasso, favorecem o surgimento de loucuras, desvarios de todo tipo, conduzindo o mundo ao precipício das pandemias. O distanciamento social, o medo de adoecer e de perder a vida envolvem a sociedade com o silêncio, até aqui pouco praticado. E abraçar esse silêncio incomoda uma sociedade desorientada, exatamente por não ter o hábito de escutar. Quem não silencia fala o que não deve, compromete rumos e corre riscos. O silêncio profundo possibilita superar a escuridão existencial; conquistar a sabedoria necessária para que não haja um colapso total. A humanidade precisa deixar-se inundar pelo completo silêncio desta Sexta-feira Santa, celebração da paixão e morte de Jesus, Deus e homem, salvador e redentor.

O rumo novo para se repensar a existência requer a sabedoria de contemplar e almejar a vida eterna, fundamento de uma dinâmica espiritual capaz de garantir consistência e sentido ao viver. Sem qualificada espiritualidade os adoecimentos continuarão, os esgotamentos serão insuportáveis e as lógicas que alimentam pandemias, insuperáveis. O equilíbrio mundial precisará de nova lógica econômica, de uma política mais cidadã, de organizações mais solidárias, sem poder prescindir da espiritualidade. A dimensão espiritual é fonte de sentido, do viver alicerçado na simplicidade, focado no amor ao próximo. A fonte inesgotável desse amor, revelado na paixão, morte e ressurreição de Jesus, é Deus, bem diferente do que ensinam religiosidades mercantilistas e manipuladoras. Não vale qualquer espiritualidade. Só é curativa e sustentável aquela que se assenta sobre a esperança fidedigna, não ilusória, garantida por uma pessoa: Ele, Cristo, o incontestável em lógicas, gestos e na oferta de si. Aquele que mergulha no silêncio da morte para dela sair vitorioso e garantir vida plena a todos. A humanidade se deixe fecundar por este profundo silêncio, para devolver simplicidade à vida, ternura e alegria aos corações.

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

Ilustração: Jornal Estado de Minas

Entrevistados destacam dificuldades da população em situação de rua durante a pandemia

Entrevistados destacam dificuldades da população em situação de rua durante a pandemia

“Se as pessoas precisam ficar em casa, qual é a proposta para quem não tem casa? Acho que é nessas horas que a gente precisa rever as ações que estamos implementando e, de fato, dar um passo em direção àquilo que vai sanar o problema, se não vamos ficar tratando da superficialidade da questão”, aponta Élerson Silva, assessor técnico da Cáritas Brasileira, em Minas Gerais.

Durante a entrevista, Samuel Rodrigues, da Coordenação do Movimento Nacional da População de rua, destaca a necessidade de ações mais contundentes por parte dos governos e reforça a importância de garantir o isolamento social: “a gente está caminhando para dias mais frios, caminhando para o pico da pandemia no país, o Brasil não tem feito testes suficientes para identificar as pessoas que estão contaminadas, para um país com dimensão continental, o que foi feito até hoje é muito pouco”.

Em entrevista concedida por telefone, Élerson e Samuel destacam as dificuldades enfrentadas pela população em situação de rua, sobretudo, neste momento de pandemia que reforça a vulnerabilidade de uma parcela da sociedade que não tem moradia.

Élerson Silva é assessor técnico da Cáritas Brasileira, em Minas Gerais, atua diretamente nos serviços voltados para a população em situação de rua executados pela Cáritas em parceria com a prefeitura de Belo Horizonte: dois Centros de Referência da População de Rua (Centro Pop), dois abrigos institucionais para famílias, um para mulheres, e o serviço de emergência e calamidade de acolhimento às pessoas que foram desabrigadas pela chuva.

Samuel Rodrigues é membro da Coordenação do Movimento Nacional da População de Rua, nas ações de Minas Gerais. O Movimento atua em treze estados. Durante a pandemia, vem desenvolvendo ações coletivas, arrecadando e distribuindo doações, realizando trabalhos de conscientização e fazendo incidência política.

Confira a entrevista:

Qual o retrato da população de rua hoje, em Belo Horizonte e no cenário nacional?

Samuel: Pensando no cenário nacional, é uma relação ainda de muito medo e desinformação. Muita fala de “isso não pega em nós”, mas as cidades se esvaziaram e a galera está com muito medo e sobrevivendo do fruto do trabalho da sociedade civil que tem se mobilizado em várias capitais, pessoalmente  levando comida e água, o mínimo necessário para essa galera. E, na verdade, uma ânsia muito grande de resposta governamental. Então, tem sido um cenário de muito pavor e solidariedade por parte do movimento e das pastorais e associações que têm se juntado para prestar serviço a esse público nessa época de pandemia. Muitos sobreviviam da coleta seletiva e nem isso está tendo.

Élerson: Esse quadro de pandemia só agrava uma situação já existente, que é a situação do descaso com as pessoas que estão em situação de rua. É importante frisar que as pessoas que estão em situação de rua são fruto de um sistema que as descarta e as trata como lixo. Para mudar essa realidade a gente precisa mudar o sistema e repensar nossa forma de viver. Quando você pergunta como estão as pessoas em situação de rua, seja em Belo Horizonte, Minas Gerais ou em todo Brasil, elas continuam no mesmo estado, sendo descartadas e sem uma ação estrutural para que se resolva o problema.

Em relação à pandemia, quais medidas estão sendo tomadas para proteger funcionários, voluntários, moradores e usuários dos serviços oferecidos?

Samuel: Tenho orientado todos voluntários que chegam a lavar as mãos,   colocar luva e máscara, dentro da quadra não pode permanecer sem os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), para ter segurança. A gente vai para a rua e na volta já descarta esses EPIs de forma correta, assim que a gente chega tem um saco de lixo, a gente coloca tudo ali. E temos orientado a população de rua, tentando organizar filas, com pelo menos um metro de distância de um para o outro, incentivando os companheiros a fazer a higienização das mãos sempre que possível. Então há um cuidado com essa galera que tem prestado serviço de forma voluntária e o cuidado para que a gente possa continuar a fazer o que estamos fazendo, sem nos tornarmos um vetor de transmissão do coronavírus. 

Élerson: Em consonância com as recomendações dos órgãos de saúde também estamos tomando muito cuidado [com as equipes de trabalho]. A primeira medida que tomamos foi fazer o mapeamento daquelas pessoas que são do grupo de risco. Orientamos para que permaneçam em casa, em quarentena, cuidado de si e cuidando dos seus. Como executamos serviços essenciais também fizemos um esforço muito grande para adquirir os itens de higiene: máscaras, luvas, sabonetes, álcool em gel, acesso à água. Temos dado orientações, distribuído panfletos e conversado com cada pessoa, porque nós sabemos que um dos agravantes dessa pandemia é o fato de que a maioria das pessoas apresentam sintomas leves ou não apresentam sintomas, então estamos fazendo um trabalho e um esforço muito grande de conscientização das pessoas para que nós não sejamos vetores de transmissão.

E quando a pessoa apresenta o sintoma? Para a equipe da Cáritas já existe uma orientação, mas e no caso dos usuários dos serviços, quando eles apresentam os sintomas, qual é o encaminhamento?

Élerson: A principal orientação é a de não favorecer aglomerações, então, a fim de proteger os usuários e a equipe, as pessoas que têm acesso ao Centro Pop têm acesso organizados em grupos de 50 pessoas, que procuram resolver  suas necessidades, seja banho ou alimentação e distribuímos também sabonete e água. Para Belo Horizonte nós temos um serviço que acolhe até 300 pessoas, para onde nós encaminhamos todas as pessoas em situação de rua que apresentam sintomas e necessitam de isolamento. E claro, temos contado com muita parceria da própria Secretaria Municipal de Saúde que atua, por exemplo, na vacinação contra a gripe, são medidas que amenizam. A Cáritas, embora execute esse serviço com a prefeitura, é parceira do Movimento Nacional da População de Rua e da pastoral, compõe esse grupo da sociedade civil que tem solicitado a ampliação de pontos de higiene na cidade.

Samuel: Bem lembrado pelo Élerson, essa população está na rua, mais vulnerável a esse vírus porque foi fruto de um descaso de longa data, mas a sociedade civil tem se mobilizado na iniciativa de levar alimentação e coisas emergenciais para essa galera. Então, é preciso alertar que é necessário ir além desse esforço da sociedade civil, por exemplo, em Belo Horizonte que está acolhendo pessoas com sintomas. Temos que pensar nas pessoas que ainda estão nas ruas e estão a mercê do que está acontecendo.

Se tratando da pandemia, quais os maiores desafios encontrados ao trabalhar com a população em situação de rua?

Élerson: O grande desafio é a falta de uma política efetiva e estrutural, e para que a gente não fique em cima do muro, é a política de moradia universal para a população em geral com foco na população em situação de rua. Nós só vamos resolver o problema das pessoas que estão em situação de rua se a gente superar essa barreira que existe em relação às políticas de interesse social voltadas para a população de rua. É lógico que a moradia não é a única coisa, você não tira a pessoa da situação de rua sem uma certa estabilidade e a estabilidade vai ser real quando você tiver uma moradia, não estou falando da defesa da propriedade, mas da moradia.  Então, diante da realidade da população em situação de rua, em relação à pandemia soa até uma violência você escutar “fique em casa”. Quando um órgão público desenvolve uma campanha que pede para que as pessoas fiquem em casa, sendo que você tem uma grande parcela de pessoas que nem casa tem, isso é não levá-las em consideração, é dizer existe um grupo da sociedade que eu desconsidero. Se as pessoas precisam ficar em casa, qual é a proposta para quem não tem casa? Acho que é nessas horas que a gente precisa rever as ações que estamos implementando e, de fato, dar um passo em direção àquilo que vai sanar o problema, se não vamos ficar tratando da superficialidade da questão.

Samuel: A informação chega pouco na rua e quando chega é picotada, aí as pessoas acabam crendo que isso é de fato uma gripezinha, um resfriadinho, “isso não pega em nós, porque nós estamos imunes, porque a gente já vive na rua, enfrenta as intempéries climáticas”. Então, a gente tem feito um trabalho nas entregas de alimentação: explicar a letalidade do vírus, instigá-los, inclusive, a pleitear abrigamento, fazer uma pressão para que a rua possa pressionar o Estado a cumprir o mínimo dessa perspectiva de isolamento social. Nas filas de doações é um desafio muito grande fazer as pessoas se  manterem afastadas. Não é para a sorte de ninguém, mas a realidade é que a pandemia entrou pelos aeroportos, ela não entrou pelo moto táxi que vai à comunidade, mas a gente sabe que ela caminha a passos largos e a qualquer hora pode atingir a população de rua, os catadores, a população carcerária, e assim, a gente teria uma catástrofe. A população de rua fica principalmente nas regiões centrais aglomerada, reunida, juntos na mesma maloca, às vezes, até mesmo no serviço de acolhimento. Então, esse gargalo da informação talvez seja nesse momento, um desafio.

Élerson: Em relação à aquisição de itens de higiene e de equipamentos de segurança de proteção individual, a recomendação é que nós façamos ampla distribuição para que todos tenham acesso, mas se as equipes médicas dos hospitais não estão tendo acesso, você imagina a dificuldade que nós estamos tendo para a aquisição de itens de higiene? Álcool em gel praticamente não existe mais no mercado. Para amenizar um pouco esse impacto nós fizemos uma parceria com os empreendimentos de costura do Fórum Metropolitano de Economia Solidária aqui da região de Belo Horizonte, então nós estamos fazendo a aquisição de máscaras de pano, tanto para os trabalhadores, quanto para as pessoas atendidas, já nos antecipando a um possível agravamento da situação, prevista entre meados de abril, indo até maio e junho. Um outro desafio, que vai na direção que Samuel colocou, é em relação à saúde mental das pessoas afetadas pelo medo e pelo pânico que a própria pandemia, junto com o quadro de quarentena e isolamento tem proporcionado.Usuários do Centro Pop Sul recebem vacina contra a gripe

Usuários do Centro Pop Sul recebem vacina contra a gripe

Como vocês avaliam as medidas do Governo Federal para responder a emergência da Covid-19, no campo da assistência social, elas contemplam adequadamente a população em situação de rua?

Samuel: Eu vou dizer que não e vou explicar o por que: a posição do Governo Federal só desfavorece a população de rua, nós estamos fazendo uma luta para tirar as pessoas que sofreram na rua, as pessoas que não tem pra onde ir para que elas possam se isolar também. E tem o presidente incentivando quem não precisa estar na rua a ir para a rua em carreatas, por exemplo. O Movimento Nacional da População de Rua, em Belo Horizonte, espera muito mais dos governos federal, estadual e municipal. 

Élerson: Eu penso que muito ajuda quem não atrapalha. Então se nós tivermos uma orientação única no Governo Federal, eu acho que isso já contribuirá muito para que as ações dos entes federativos inferiores, que são os estados, municípios e nós que estamos na ponta estejam alinhados. No âmbito federal não há consenso em relação às políticas públicas, então se prega o isolamento, mas outras iniciativas do Governo Federal vão contra esse isolamento. Infelizmente, ter serviço público gratuito universal à disposição da população não é uma realidade. Nós estamos falando aqui de Belo Horizonte, mas nós temos contato com outras regiões e outras Cáritas do Brasil onde sequer existe qualquer ação do poder público. Até em função daquilo que a gente experimentou agora na Quaresma e está experimentando ao longo deste ano na Campanha da Fraternidade, nós trabalhamos também em favor da vida e nada substitui o contato pessoal. Assim como Cristo ia em direção das pessoas, em direção dos leprosos, na época, a gente também está na rua, respeitando as orientações dos órgãos de saúde, mas alguém precisa estar com aqueles que ninguém quer estar, e somos nós, é a Pastoral é o Movimento Pop Rua, somos nós da Cáritas, né? Lembrar que existem comunidades quilombolas, comunidades indígenas, comunidades e povos tradicionais que estão sofrendo muito também, muito desses indígenas também estão em situação de rua, muitos dos migrantes e refugiados também estão em situação de rua.

Diante do cenário que foi colocado por vocês quais são os maiores desafios para o futuro das pessoas que vivem em situação de rua?

Samuel: Eu sou um cara otimista demais. Eu tenho uma perspectiva de futuro de que a humanidade vai começar a olhar as classes vulneráveis, dentre elas a população de rua, a população negra, quilombola, as mulheres chefes de família, penso que no futuro nós vamos sair dessa muito melhores, como humanos, muito melhores enquanto gestores, muito melhores como sociedade,  acho que a gente está sendo colocado à prova e, na minha perspectiva de futuro, embora eu saiba que nós vamos chorar muitas vidas que já foram e serão ceifadas, por conta desse vírus, creio que a gente saia do outro lado melhor, que a população de rua saia do outro lado, junto com a humanidade, melhor e creio que, a partir disso, a gente consiga pensar políticas públicas estruturantes. 

Élerson: O cuidado com a vida é primordial e vamos trabalhar em relação a isso para resolvermos problemas estruturais. Não podemos viver mais num sistema que coloca grande parte dos recursos em especulação financeira, para alimentar um sistema que acumula todo patrimônio na mão de poucos, na qual a grande maioria não tem o suficiente pra viver. Nós queremos um outro tipo de sociedade, uma sociedade que respeita a vida das pessoas, que respeita outras formas de organização. A pandemia tem questionado muito a nossa construção social, a própria vida urbana tem sido muito questionada, que a gente possa construir outras propostas e iniciativas.

Texto: Francielle Oliveira – Comunicadora Popular da Cáritas Brasileira Regional Minas Gerais

Fotos: Arquivo Centro Pop Sul

Colaborou: Sandra Silva

Fonte: Site CNBB